segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Manzan e planilhas

O triatleta Alexandre Manzan, maior nome do triathlon cross-country do Brasil, não segue planilha alguma para treinar. Conciliando suas rotinas de trabalho e treino, ele mostra que é possível conseguir o melhor dos preparos divertindo-se.
A MAIOR DIFERENÇA ENTRE VOCÊ e o triatleta brasiliense Alexandre Manzan, 35 anos, é o tempo final numa competição. De segunda à sexta, ele também concilia as sessões de treinamento com uma rotina integral de trabalho. Isso não o impediu, no entanto, de se transformar no maior nome do triathlon cross-country do Brasil, tornando-se uma das figuras mais destacadas do XTerra, o circuito mundial que é perseguido pelos melhores competidores dessa modalidade.

Não queremos te comparar a ele nem menosprezar todo o esforço que você faz para adicionar o esporte ao seu trabalhoso cotidiano. Muito menos te iludir de que é possível se tornar um atleta de elite da noite para o dia. Mas não há dúvida de que podemos todos aprender com um cara que tem pouco tempo para treinar durante a semana e que, mesmo assim, consegue preparo de qualidade.

A comprovação está nos resultados. Em 2008, Manzan foi campeão da etapa brasileira do XTerra, em Angra dos Reis, superando atletas de ponta consagrados, como o argentino Oscar Galindez e o norte- americano Brian Smith. No ano passado, ficou em terceiro na mesma competição, chegando atrás apenas do experiente canadense Mike Vine e do costariquenho Rom Akerson, uma das fortes promessas do triathlon mundial, vencedor daquela prova.
Esse ano, Manzan já venceu com Cristina de Carvalho a categoria dupla mista do Cruce de Los Andes (ultramaratona em trilha na Patagônia argentina e chilena) e papou a segunda etapa do XTerra Series, em Pedra Azul, no Espírito Santo. Mesmo com a mão quebrada depois de sofrer uma queda durante o trecho de mountain bike, ele conseguiu terminar na frente. "Terei que fazer uma cirurgia e, infelizmente, ficarei fora de algumas competições, como o XTerra Regional na floresta Amazônica", lamenta.

Mas ele já planeja a volta para o final de junho. Dia 26, pretende comparecer à terceira edição do Brasília Multisport, uma prova que mistura corrida, ciclismo e canoagem, em várias sessões alternadas, vencida por ele em 2008. E em setembro estará suando na etapa nacional do XTerra, em Angra. "A competição está no meu sangue. Aquela coisa de querer ser cada vez mais rápido, de se superar", assume. "Mas hoje sinto que o maior presente que o esporte me deu foi a qualidade de vida. Para mim, treinar significa estar no máximo da minha pureza." Ou seja, é preciso realmente curtir as horas de preparação, e não achar que o prazer está só na linha de chegada.

Em maio, Manzan completou 20 anos de triathlon. Nesse tempo, correu vários campeonatos mundiais da modalidade. Foi bi-campeão pan-americano em 1993 e 1994, vice-campeão mundial em 1996 e campeão sul-americano em 1998. Teve apenas um treinador, o experiente José Gustavo Souza de Alvarenga, que o auxiliou no início da carreira. "Hoje, la garantia soy yo", brinca. Além da facilidade de acesso à informação, Manzan já tem conhecimento sobre o próprio corpo. E essa sensibilidade, segundo ele, é o mais importante para qualquer atleta criar sua bagagem de treino. "Meu técnico é o meu corpo, ouço tudo o que ele fala. Quem está começando, geralmente quer fazer volume de treino. Só que quantidade, ao contrário do que se imagina, não garante resultados rápidos. Isso sem falar nas lesões que podem ser geradas em razão disso. Então um treinador pode ajudar bastante no começo."
A SEMANA DE MANZAN começa na segunda com 50 quilômetros de mountain bike pelos arredores de Brasília. Em seguida, ele volta para casa e vai trabalhar de carro. No fim do expediente, a piscina o espera para uma puxada de 3 quilômetros. Terça-feira é dia de ir pedalando ao trabalho - são 20 quilômetros até lá. Antes de voltar para casa, Manzan passa na natação para mais 3 quilômetros de exercício. "Alternar bike e natação é bom para mudar o direcionamento sanguíneo", acredita. "Quando você pedala, a circulação se concentra nas pernas, ao contrário de quando nadamos. E pedalar antes de nadar é importante para deixar o corpo acostumado com a troca de modalidade que acontece no triathlon."
Manzan é dos raros atletas que não se deixa enganar pelo "quanto mais, melhor". "Treinar demais é uma das coisas que definitivamente não funcionam para mim", diz, com franqueza. "Pode parecer vagabundagem, mas na verdade é fisiológico. Quando faço uma sequência de treinos muito intensos, meu corpo acumula cansaço, e o resultado não é o mesmo de quando treino mais na boa. Prefiro chegar às competições um pouco menos treinado, mas mais descansado e relaxado", ele diz. "Por isso saio para treinar pensando que será a melhor parte do meu dia. Quando você age dessa forma, seu corpo é capaz de otimizar aquele momento, e corresponderá melhor quando realmente for preciso." Deixar o treino com cara de lazer não significa se enganar, mas saber acelerar na hora certa. "Às vezes, indo para o trabalho de bike, percebo que estou num dia bom e resolvo estender o percurso, ou seguir por um caminho com mais subidas. Aí, aumento o ritmo ladeira acima."

Quarta-feira é o único dia útil da semana em que Manzan não nada. Normalmente vai trabalhar pedalando, em ritmo bem leve, e no início da noite chega em casa e já sai para uma corrida de 12 quilômetros. Dessa forma, aproveita o dia em três sessões de treino: uma de bike antes do trabalho, outra, de quarenta minutos, também sobre duas rodas, para voltar para casa, e a última, de uma hora de corrida. "O treino seccionado é um recurso que funciona bem comigo. Tenho um rendimento melhor do que se tentasse fazer um treino extenso, numa paulada só."

Quinta-feira é dia do treino longo - entre 15 e 20 quilômetros - de corrida em trilha. "Volto para casa, almoço mais cedo e vou trabalhar de carro. À noite, vou para a piscina, para o terceiro treino de 3 quilômetros da semana." A sexta-feira costuma ser uma repetição do dia anterior, já que ele terá sábado e domingo livres para se dedicar a uma sessão mais técnica ou mais longa de pedal. "No mínimo duas vezes por mês aproveito um sábado ou um domingo e me mando para Pirenópolis", diz ele, referindo-se à cidade que fica a cerca de 150 quilômetros de Brasília e que é o éden dos mountain bikers do planalto central. "Lá tem muitos rolês de bike, tanto para te tomar uma manhã inteira quanto os que podem ser feitos em circuitos curtos, de cerca de 10 quilômetros." Manzan quase sempre opta pelos mais longos, de 60 quilômetros, com bastante subidas. Finalizado o giro com a bike, ele aproveita o cenário para correr 6 quilômetros na terra. Quando não vai a Pirenópolis, pedala 120 quilômetros no asfalto, com bicicleta de estrada, o que corresponde, aproximadamente, ao tempo de treino com a mountain bike.
Apesar de ter organizado seus treinos dessa forma, Manzan garante que não é xiita e que há cinco anos aposentou suas planilhas. "Costumo treinar dessa forma, mas não é uma regra", garante ele. "Minha regra número 1 é não ter regra. Tenho a sorte de ter prazer em treinar todos os dias."
Mas, calma. Nem tudo está perdido se você não pode, como Manzan, se dedicar diariamente. "Três vezes por semana já dá para condicionar um triatleta, não para ser um campeão, mas para estar satisfeito consigo", garante Manzan. "Se esse fosse o meu caso, eu continuaria envolvendo as modalidades nos deslocamentos. Encaixaria duas em dois dos dias e, no terceiro, daria prioridade àquela de maior deficiência. Quinzenalmente também faria um trabalho de qualidade. Alteraria um fartlek (treino intervalado) com um treino mais longo de alguma das duas melhores modalidades." Ou seja, com a intenção de otimizar o tempo mínimo, a saída seria um treinamento cíclico, que não se repetiria semanalmente.
"A MINHA NATAÇÃO É UMA MERDA", exagera ele, quando questionado sobre a sua expertise técnica. "Nas provas de triathlon até consigo sair da água perto dos primeiros colocados, mas é porque treinei muito para compensar a falta de técnica com força física." Manzan põe a culpa na pouca flexibilidade que tem nas costas, o que encurta o movimento dos braços dele e o torna ligeiramente desalinhado. "Além de essa defasagem limitar a extensão das minhas braçadas, gasto mais energia, porque tenho que compensar o movimento com a musculatura." E não deu outra: de todos os exercícios sugeridos pela reportagem "Teste-se", publicada na página 87 desta mesma edição de Go Outside, o único em que Manzan levou bomba foi o teste da Mobilidade Funcional. "Não tive problemas com o exercício A, mas fui reprovado no B, agachamento profundo", admite. Manzan "gabaritou" todos os outros testes, por isso resolvemos dar uma cancha e manter a nota 10 do título desta reportagem.

Se na natação Manzan sofre um pouco, no ciclismo ele mostra sua maior evolução. Por vir do triathlon clássico, em que se pedala e corre no asfalto, ele teve que passar por um processo de adaptação para não ter que botar o pé no chão nas trilhas mais técnicas. E tirou isso de letra. "No mountain bike você reaprende a pedalar, já que a técnica do ciclismo de estrada é muito mais simples", compara. Some-se a isso o fato de que os principais adversários dele no circuito XTerra, como o canadense Mike Vine, são verdadeiros ases do mountain bike, e que essa é a modalidade que praticamente decide a prova, e você terá ideia de quanto Manzan teve que literalmente pedalar para estar entre os melhores do mundo. "Os gringos treinam muito pedal. Sou satisfeito com meu desempenho porque não sou um atleta em período integral", pondera.
Se pudesse, Manzan diz que investiria mais em intensivões de cada modalidade, como se isolar durante um mês em Pirenópolis e, assim, aumentar o volume de pedal. "Claro que não deixaria as outras atividades totalmente de lado. Mas, quando você se dedica a apenas uma modalidade durante um intervalo de tempo, adquire uma bagagem impressionante, que pode ser mantida pelo ano inteiro." É para corrigir um pouco essa defasagem - além, é claro, de conhecer novos lugares - que, todo ano, ele se joga em uma expedição de cicloturismo. "São os quinze dias que fazem a diferença e que me dão uma confiança inexplicável para continuar treinando motivado durante todo o ano", garante.

Já na corrida, assim como na natação, a técnica é um fundamento difícil de ser adquirido depois de adulto. Mas, ao contrário do que acontece na água, a troca de passos é um dom nato de Manzan. Com uma biomecânica perfeita, ele alarga as passadas sem prejudicar o ritmo, e seus pés têm recepção e transição alinhadas com o solo. Além disso, ele consegue manter o tronco ereto, corrigindo bem os desequilíbrios com os braços. "É gritante a superioridade da minha corrida em relação às outras duas modalidades, principalmente a natação. Nem a falta de flexibilidade atrapalha quando estou correndo", reconhece. Tanto que é na corrida, a fase derradeira das provas de triathlon, que Manzan se transforma no Pac Man e, mesmo que não consiga ultrapassar os competidores que ficaram à sua frente na natação e na bike, pelo menos diminui absurdamente a diferença. Isso, sim, é regra para ele.
"Ao contrário do ciclismo de estrada, o mountain bike não é apenas força de pedalada, tem a questão de lidar com terrenos irregulares em declives e aclives"


HÁ CERCA DE UM ANO, Manzan descobriu outra brincadeira: o treinamento funcional, que trabalha simultaneamente diferentes grupos musculares em associação com outras habilidades, como equilíbrio, alongamento e resistência. "Na prática, eu executava esses exercícios muito antes, andando de skate e na prancha de equilíbrio que meus amigos escaladores já tinham há algum tempo." A parte teórica do treino ele pesquisou em livros e revistas e, hoje, encaixa exercícios que mexem, principalmente, com a propriocepção. "Eu não tenho histórico de lesão por torção em prova. A sorte pode até ter me ajudado, mas o fato é que também incluo o treinamento funcional no meu dia: escolher o pior caminho, pular de um banco a outro na praça, me equilibrar num toco instável, pisar numa tábua que você sabe que está solta para, em seguida, tentar realinhar o corpo. São coisas inesperadas, criadas à base do improviso, mas que acabam sendo produtivas nos momentos em que precisará de uma resposta rápida até para evitar uma contusão, por exemplo."

Na bike, o desequilíbrio é parte da brincadeira. Por isso, Manzan enxerga no mountain bike um autêntico treinamento funcional. "Ao contrário do ciclismo de estrada, o MTB não é apenas força de pedalada, tem a questão de lidar com terrenos irregulares em declives e aclives."

O que se ganha treinando e agindo dessa forma? E a resposta passou longe de mais vitórias no currículo. "Versatilidade", respondeu de primeira. "Não me considero um exímio nadador, ciclista, corredor ou remador. Mas até se você me chamar para subir uma montanha eu vou."

Revista Go Outside

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